quinta-feira, 26 de agosto de 2010

I - NATURAIS - ou 'uma curiosa estória sobre nomes, pedras, números, etc.'

O conceito de número existe por si só, ou trata-se de uma invenção humana ? A capacidade de contar nos é inerente ? Para o psicólogo e neurocientista francês Stanilas Dehaene, a resposta é sim. Todos nós nascemos com um senso numérico que nos permite avaliar quantidades e magnitudes.

A professora assistente de psicologia e neurociência da universidade de Duke, Elizabeth Brannon criou uma série de experimentos no intuito de demonstrar que esta faculdade está presente também em alguns primatas. Dehaene vai mais longe, ao cogitar que o senso numérico poderia ser verificado em vário outras espécies, além dos primatas.
Mas o que vem a ser este senso numérico ? Existe uma forma simples de descrevê-lo ? A grosso modo, podemos ilustrar a ideia de senso numérico utilizando as seguintes figuras :
Cada figura representa dois conjuntos de pedras. À esquerda temos um conjunto de pedras marrons e à direita, um outro conjunto de pedras azuis. Você é capaz de comparar as quantidades de pedras marrons e azuis em cada grupo, e dizer qual contém mais pedras sem efetivamente contá-las ? Nos dois primeiros casos, certamente sim. Quanto ao terceiro, algumas pessoas acertam, outras erram. Se você realmente não chegou a contar as pedras dos conjuntos, foi o senso numérico quem norteou suas comparações de quantidades de pedras em cada conjunto. Foi ele quem lhe forneceu um sentimento de | e | quando você se deparou com a primeira figura. Do mesmo modo, ao avaliar a segunda figura, o senso numérico lhe forneceu o sentimento de || e |||, e você logo percebeu que o conjunto com ||| pedras azuis era maior que o com || pedras marrons. Já no terceiro caso, a maioria das respostas é de que o conjunto de pedras marrons é maior. Um número considerável de pessoas, no entanto, afirmam de cara que os conjuntos são iguais. Esta é uma das características do senso numérico. A diferença quantitativa entre os grupos tem que ser relativamente alta, para que a percebamos. Assim, é fácil distinguirmos ||| de ||||||, pois o segundo grupo tem o dobro de ocorrências em relação ao primeiro. Porém, as duas quantidades :
||||||||||||||||||||||||| e ||||||||||||||||||||||||||
Não são fácilmente distinguiveis por nosso senso numérico. Existe ainda um outro dado acerca desta experiência que talvez você não tenha notado. O sentimento de | e | da primeira figura, e o de || e ||| da segunda, são familiares a você. Isto desde quando você era ainda uma criança. Estes sentimentos também fazem parte do que se conceitua como senso numérico. Alguns estudos sugerem que temos facilidade de reconhecer as quantidades |, ||, ||| e ||||, como entidades distintas. A maioria das línguas primitivas possuem "nomes" para elas. Mesmo em idiomas não tão antigos assim, tal como o Tupi, encontramos palavras específicas para designar estas quantidades. Assim, oiepé designa |. mocõi é o nome da quantidade ||. ||| é chamado de mossapyr e o |||| de irundyc. Grandezas maiores eram referenciadas pela colocação do sufixo etá (que significa "muitos") ao substantivo. A palavra abáetá significa portanto, "muitos homens" (abá = homem e etá é o sufixo que designa muitos). O mesmo fato se verifica no estudo de civilizações muito antigas. Algumas tinham nomes para as quantidades | e ||, outras para |, ||, e |||. O fato é, essas quantidades evocam cada uma, um sentimento particular, que logo foram traduzidos em palavras. Versões mais modernas do tupi, incluem construções que podem ser utilizadas para representar, por analogia, números maiores. Desta forma, a quantidade ||||| podia ser descrita por xe pó, que significa "minha mão". Também utiliza-se mocõi pó e xe pó xe py, que significam "um par de mãos" e "as mãos e os pés", cujo significado numérico é fácil de deduzir. De qualquer forma, os sentimentos de |, ||, |||, |||| e "muitos", é encontrado muitas vezes na história antiga da humanidade. Se você observar crianças muito pequenas, também notará que elas carregam traços destes sentimentos. Isto reforça a ideia de que o senso numérico é um talento natural dos humanos, e talvez de alguns poucos seres vivos.
Outro aspecto do senso numérico pode ser observado, quando nos deparamos com as seguintes figuras :
Percebemos que cada par representa a mesma figura, mas existe uma diferença quantitativa entre elas que não pode ser descrita por nossos sentimentos de |, ||, |||, |||| e "muitos". O conceito de número está de certa forma, disfarçado em cada par. Ao invés de estarmos tratando de quantidades discretas, cada par de figura representa um aspecto que, pelo menos na aparência, difere substancialmente do que temos tratado até agora. De qualquer forma, a diferença de magnitude entre os pares salta aos olhos. Na verdade, o mesmo sentimento que nos permite diferenciá-los, está estreitamente relacionado com o que nos permite diferenciar os grupos de pedra. Esta capacidade de diferenciarmos quantidades, aliada ao fato de conseguirmos reconhecer algumas delas, formam o ponto central do conceito que estamos chamando de senso numérico.
Mas o que dizer sobre os mecanismos envolvidos no processo de contar ? Quanto a isso, bem podemos obter algumas pistas quando observamos a maneira encontrada pelos índios para representar quantidades maiores que ||||. Podemos contar por associação. "Uma mão" em tupi, representa, além de uma mão, também a quantidade |||||. Há um certo grau de abstração nesta idéia. Mas existe também um exemplo clássico, sempre citado em textos matemáticos. Trata-se da tarefa de contarmos cadeiras e pessoas em uma sala de teatro, no intuito de concluirmos se existem ou não cadeiras suficientes para acomodar todas as pessoas presentes. Seria trabalhoso contar uma a uma todas as cadeiras, e depois contar uma a uma as pessoas, para chegarmos à nossa conclusão. Bastaria que fizéssemos todas as pessoas sentarem, cada qual em uma cadeira, que rapidamente teríamos a idéia da relação entre as duas quantidades. Outro exemplo muito utilizado é o do saco de pedras. Alguns historiadores cogitam que nossos ancestrais utilizavam um saco de pedras para contar seu rebanho. O saco seria construído da seguinte forma : Fazia-se o rebanho passar por uma um caminho estreito. Para cada boi (ou ovelha) que passasse, o dono colocava uma pedra no saco. Depois que todo o rebanho tivesse passado, o saco conteria uma pedra para cada cabeça de gado. Ao final do dia, quando fosse necessário recolher o rebanho, passava-se o mesmo pela passagem estreita um a um. Desta vez, para cada boi (ou ovelha) que passasse, retirava-se um pedra do saco. Se por exemplo, sobrassem || pedras no saco, o dono do rebanho teria certeza de que || dos seus bois (ou ovelhas) foram roubados ou se perderam.
Os três exemplos acima, utilizam um modo de contagem indireto, nos quais duas quantidades são postas em paralelo. Este tipo de associação é chamado de "relação um-para-um", ou ainda, relação biunívoca. Apesar de ser um conceito bastante simples, seu poder é imenso. Foi baseado principalmente neste conceito que o matemático Georg Cantor fundamentou suas provas a respeito da quantidade dos elementos nos principais conjuntos numéricos, tais como os NATURAIS, os INTEIROS, os RACIONAIS e os REAIS. Trataremos deste tópico com mais detalhes futuramente. Por enquanto, basta saber que baseado nesta idéia simples, Cantor provou que a quantidade de números RACIONAIS é a mesma que a de números NATURAIS, e que existem mais REAIS que NATURAIS.
O uso deste tipo de artifício, extrapola muito nosso inato senso numérico. Este, por sua vez, apesar de nos levar a cometer alguns enganos, não deve ser negligenciado. O senso numérico é limitado e sujeito a falhas. Mas talvez, justamente para corrigir estas deficiências é que os índios tenham tido a idéia de associar uma mão à quantidade |||||. Podemos dizer que se existe algo que pode ser chamado de "pai da matemática", este algo é o senso numérico. As experiências da Dra. Elizabeth com crianças e macacos, sugerem que até mesmo conceitos complexos como o da operação matemática de "adição", podem surgir expontâneamente durante as sessões.
Segundo Carl B. Boyer, definir um símbolo para as quantidades deve ter precedido a vocalização de um nome para elas. Isto é coerente, se pensarmos que é mais fácil desenharmos na terra ||| traços, do que elaborarmos o nome mossapyr. Podemos dizer que a própria representação de uma quantidade, constitui-se no "nome" da mesma. A quantidade || pode ser descrita pelo nome vocálico "dois" ou pelo nome "simbólico" 2. Povos distintos utilizaram-se de métodos distintos para dar nomes às quantidades. O sistema de numeração egípcio é um bom exemplo. Certas quantidades especiais eram "batizadas" com um símbolo específico.
A representação das outras quantidades, era feita pelo uso de um ou mais destes símbolos, repetindo alguns deles quando fosse necessário. Uma certa capacidade de "adição" está implícita neste modo de escrever quantidades.




Uma variação melhor foi utilizada pelos romanos. O princípio é muito parecido com a numeração egípcia, mas mais econômico. Os símbolos utilizados são :
    1 -  I
    5 - V
  10 - X
  50 - L
100 - C
Entre outros
Um símbolo poderia ser repetido apenas três vezes. Para que isto fosse possível, convecionou-se que quando um símbolo de uma quantidade vier precedido do símbolo que representa uma quantidade menor, deve-se subtrair a menor da maior. Assim IX é a quantidade X subtraida de I, ou 10 - 1 = 9. Do mesmo modo, 94 deve ser representado pelo nome XCIV, ou 100 - 10 + 5 - 1.
É fácil perceber que fazer operações matemáticas nestes dois sistemas não é uma tarefa simples. Quanto a isto, nada se compara ao método encontrado entre os babilônios. Estes usavam um sistemas de símbolos cujo valor, dependia da posição em que ele ocupava, muito parecido com o sistema que utilizamos hoje, no qual com apenas 10 símbolos (0, 1, 2, 3, 4, 5, 6, 7, 8, 9) podemos representar qualquer quantidade de forma concisa, com a vantagem de que as operações matemáticas são fáceis de realizar.
Está claro portanto que a escolha de um "sistema de símbolos" eficiente não se desenvolveu de forma homogênea entre os povos. Iremos exercitar brevemente nossa imaginação a este respeito. Vamos nós mesmos, criar nosso sistema de nomes de quantidades. Incialmente, seguimos nosso bom-senso representando-as por traços desenhados no chão. A quantidade | terá seu nome escrito com | traço. A quantidade ||||| será escrita com ||||| traços. Bem, acho que você pegou a idéia. Em um certo dia, ficamos insatisfeitos com o nosso sistema e resolvemos consultar um sábio (talvez um pajé) para que ele verificasse se haveria outro meio de dar "nomes" às quantidades. O sábio nos olhou de soslaio, e nos deu imediatamente o poder de materializarmos pedras marrons. O sábio nos disse ainda que a cada pedra marrom se dá o nome de a (que em tupi quer dizer "cabeça", "coisa arredondada", ou mesmo "raiz"). Agora podemos chamar | de a, || de aa e ||||| de aaaaa. Logo percebemos que o pajé, no fundo no fundo, nos enganara. Fora a capacidade de vocalização dos nomes, este método não era diferente do de fazer riscos no chão. Voltamos ao sábio e relatamos nossa insatisfação. Ele, utilizando-se de algumas palavras mágicas e gestos suaves, nos deu o poder adicional de materializarmos pedras azuis. Ele disse que cada uma dessas pedras tem o nome y (que em tupi está relacionado a ideia de água, evocada pela sua cor azul). Passamos dias e dias discutindo como utilizaríamos as pedras a e as y para batizarmos cada quantidade com um nome diferente. Nosso principal problema era garantir que os nomes jamais se repetissem. Depois de muita dor de cabeça, acabamos decidindo pelas seguintes regras.
R|- Um nome é a concatenação de pedras azuis e marrons ;
R||- Nomes com mais pedras virão depois dos nomes com menos pedras. ;
R|||- Os nomes com mais de | pedra, começam com pedras azuis ;
R||||- Dados || nomes com a mesma quantidade de pedras, lendo o nome da esquerda para a direita, aquele que na primeira posição diferente, tiver uma pedra marrom, será o menor.
R| é auto explicativa. Afinal, nossa tarefa é justamente dar nomes às quantidades utilizando pedras a e y. Decidimos em R|| que as primeiras quantidades teriam nomes formados com | pedra. Em seguida, formaríamos nomes com || pedras cada, depois nomes com ||| pedras cada, e assim sucessivamente. Logo, dados dois nomes com quantidades diferentes de pedras, saberíamos de imediato que o nome com mais pedras representaria uma quantidade maior. Consideramos R||| supérflua, mas decidimos utilizar esta regra para garantir que apenas um nome começasse com a pedra marrom. Este seria o primeiro nome de nossa lista, o que estaria de acordo com o significado "raiz" que o nome a passui. Só tinhamos então um único problema. Se encontrássemos dois nomes com um número diferente de pedras, logo saberíamos que nome representa a quantidade maior, mas como comparar os nomes com o mesmo número de pedras ? Para resolver este tipo de situação, criamos R||||. Satisfeitos com nosso conjunto de regras, começamos a formar os nomes com | pedra. Estes são :

Em seguida, passamos a formar os nomes com || pedras. Formamos |||| nomes (aa, ya, yy e ay), mas descartamos os dois que começam com a, pela utilização de R|||. Dos dois nomes restantes, verificamos que R|||| estabelecia que ya representaria uma quantidade menor que yy. Nossa listas de nomes, representados por pedras, tinha agora a seguinte ordem :
As próximas quantidades teriam nomes formados por ||| pedras. Descartados os nomes que começam com a, e utilizando-se R|||| para ordená-los, terminamos com a seguinte lista de nomes :
Neste momento, sentíamo-nos completamente seguros. Nosso conjunto de regras era bastante consistente. Tínhamos absoluta certeza de que os nomes jamais se repetiriam, e não havia quantidade alguma que não pudesse ser nomeada. De posse de nossa lista, decidimos que seu primeiro elemento, o símbolo a, por seu significado sagrado, não representaria quantidade alguma. Na verdade ele representaria justamente a ausência de quantidade, ou a "raiz" do processo de nomeá-las. O Símbolo y portanto, será associado a quantidade |. Quantidades subsequentes serão chamadas pelos nomes subsequentes na lista. || será ya, ||| será yy, |||| terá o nome de yaa, e assim sucessivamente. Rapidamente nosso método se tornou popular. Percebemos então, um fato curioso. Devido sua forma arredondada, o nome a passou a ser grafado como 0. y, por ser mais alongado, passou a ser escrito como 1. Nossa lista era então escrita assim :
0, 1, 10, 11, 100, 101, 110, 111, ...
Ora, ora. Este não é nada menos do que o sistema de numeração conhecido como sistema binário, o mesmo utilizado pelos computadores nos dias de hoje. Ela representa as quantidades :
0, 1, 2, 3, 4, 5, 6, 7, ....
Na verdade, a única coisa que diferencia as duas listas de números (ou "nomes") é que a primeira utiliza apenas dois símbolos ( 0 e 1 ) enquanto a última utiliza dez símbolos ( 0, 1, 2, 3, 4, 5, 6, 7, 8 e 9 ). Estes 10 símbolos são utilizados para escrevermos os "nomes" de todas as quantidades. Podemos então dizer que cada quantidade possui dois nomes ( um vocálico e um simbólico ). "cinco" e "5" são ambos, meros "nomes" da quantidade |||||.
Nosso conjunto de regras para formação de "nomes" se mostrou portanto, bastante eficiente. Mas em determinado momento fomos assolados por uma dúvida crucial. Podíamos formar "muitos" nomes utilizando nossas regras. Seria correto então pensar em algo como uma lista de todos os nomes ? Ou melhor, existe uma lista com todas as palavras formadas pelos símbolos a e y (ou 0 e 1) ? Ela é maior que a lista de todas as palavras formadas apenas com a letra a ? Ou ainda, existe a coleção de todas as pedras que nosso poder inesgotável de materializar pedras, pudesse materializar ? Qualquer que seja sua resposta, sempre haverá um matemático que discorde de você. Uns dirão:
- Claro que este conjunto não existe. Pedra materializável não é o mesmo que pedra materializada...
E outros :
- Ora, meus caros. Vocês mesmos, em pessoa, representam este conjunto de todas as pedras materializáveis...
Pois saiba, caro leitor, que essa pergunta já foi feita antes. E muito debate e discussões calorosas foram gerados a esse respeito. No próximo capítulo, iremos investigar como este emblemático problema foi tratado através dos tempos.

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