quinta-feira, 26 de agosto de 2010

II - OS DOIS INFINITOS - ou 'os mocõi etá'

Sabemos (talvez até intuitivamente) que podemos formar inúmeros nomes diferentes usando apenas a letra a. aaa, aa, aaaaaaa, aaaa, são apenas alguns desses nomes.



Se pudermos utilizar duas letras, a e y por exemplo, imaginamos que formaremos mais nomes. Mas então surgem algumas dúvidas, bastante pertinentes. A primeira vista, os nomes formados com a e/ou y ( yay, yyyy, yayayaaa, yyyyyyyay, etc) contém dentro de si todos os nomes formados só com a letra a, e mais alguns. Isto está correto ? Podemos pensar numa lista de nomes formados só com a letra a, como uma coisa completada ?

A melhor resposta a essa pergunta é um sonoro "Talvez". Uma resposta mais ousada, seria "Depende do contexto em que este conjunto está inserido". De uma forma ou de outra, nosso sistema de "todos os nomes" é incomparavelmente superior ao |, ||, |||, |||| e "muitos", com os quais começamos a "contar" quando crianças. Mas sentimos que mesmo assim, este "conjunto de todos os nomes" nos parece completo e incompleto ao mesmo tempo. Sabemos que não há quantidade alguma a qual não poderemos atribuir um nome único. Por outro lado, temos certa dificuldade em pensar no forma escrita desta lista de nomes. Afinal, por maior que seja um nome, sempre poderemos gerar nomes subsequentes, fazendo parecer que esta lista não tem fim. Isto gera um certo deconforto em nós. Talvez o mesmo desconforto que um índio primitivo sentiria ao se deparar com quantidades do tipo "muitos". Nós usamos o termo "infinito" mais ou menos no mesmo sentido que nossos ancenstrais usavam o termo "muitos". Mas este talvez seja o menor dos problemas de nosso sistema de nomes. Dê uma breve olhada em nossas regras :
R|- Um nome é a concatenação de símbolos a e y ;
R||- Os nomes com mais símbolos virão depois (ou serão maiores) dos nomes com menos símbolos ;
R|||- Os nomes com mais de | símbolo, começam com o símbolo y ;
R||||- Dados || nomes com a mesma quantidade de símbolos, lendo o nome da esquerda para a direita, aquele que na primeira posição diferente, tiver símbolo a, será o menor.
Assim, os nomes yyaa, yayayay, yaaaya, yyyyyy, etc. seriam todos válidos. Mas o que aconteceria se decidíssemos que retirar da lista todos os nomes que terminem com a ? Temos a certeza absoluta de que retirar uma parte de um todo, resulta na diminuição deste todo. Ao retirarmos água de um copo cheio, este não estará mais cheio. Então, ao retirarmos os nomes que terminam com a de nossa lista de nomes, esta certamente terá menos nomes, certo ? Segundo a observação de Galileu, nosso universo particular de nomes não funciona bem assim. Substituindo (como já fizemos antes) a por 0 e y por 1, nossa lista de "todos os nomes" (ou ainda, "lista de todos os números"), poderia ser descrita por :
a, y, ya, yy, yaa, yay, yya, yyy, ...
ou
0, 1, 10, 11, 100, 101, 110, 111, ...
que nada mais é que a conhecida lista
0, 1, 2, 3, 4, 5, 6, 7, 8, 9 ,10 , 11, 12, 13, ...
escrita na base binária.
Ao retirarmos dessa lista os nomes que terminam em a (ou 0), restarão apenas os números que terminam em y (ou 1).
y, yy, yay, yyy, yaay, yayy, ...
1, 11, 101, 111, 1001, 1011, ...
1, 3, 5, 7, 9, 11, ...
Ora, nós conhecemos esta lista. Eles são o que chamamos de números ímpares. Os números que terminam em a, são portanto os números pares.
Pois bem, Galileu observou que não poderíamos afirmar que esta lista contém menos elementos que a "lista de todos os números". Para verificarmos o que estamos dizendo, considere que um número ímpar pode ser descrito por 2*n + 1, onde n aqui, representa um número da "lista de todos os números". Deste modo, podemos associar o 0 da "lista todos os números" ao 1 da "lista de números ímpares" uma vez que 2*0 + 1 = 1. Do modo semelhante, podemos associar o 1 de "todos os números" ao 3 de "número ímpar", pois 2*1 = 3. A relação abaixo ilustra a ideia.
Podemos concluir que para qualquer número n na lista de "todos os números", sempre haverá um correspondente na lista de "números ímpares" cujo valor será 2*n + 1. Logo, as duas listas terão o mesmo "tamanho". O raciocínio pode também ser utilizado para mostrar que a lista de "números pares" também é do mesmo tamanho. Fatos que desafiam de forma tão agressiva o nosso bom senso, são chamados de paradoxos. Galileu observou este paradoxo, mas não tentou explicar o motivo do mesmo existir. Quando conseguimos entender os motivos por trás do paradoxo, este deixa de ser um paradoxo. Deste modo, podemos dizer que este paradoxo nunca foi resolvido. Richard Dedekind (ao mesmo tempo que Georg Cantor) passou a afirmar que isto não tratava-se de um paradoxo, mas sim de uma "característica" dos conjuntos infinitos. Mas antes de falarmos sobre estes matemáticos, precisamos falar de um grande filósofo.
O infinito sempre foi uma espécie de dragão mitológico da matemática. Um monstro que não pedeira ser derrotado. Muitos autores antigos procuravam evitar definições que evocassem esta terrível ideia. Diz-se que o primeiro ser humano a resolver encarar esta fera frente a frente, foi Zeno. E dizem que foi o infinito, o monstro imbatível, quem desviou o ohar primeiro. Os ataques de Zeno ao conceito do infinito tinham, via de regra, o mesmo formato. A exposição de vários paradoxos em que situações cotidianas bem conhecidas se tornavam impossíveis se considerássemos a existência do infinito. Zeno escreveu mais de 40 paradoxos nesse sentido. Os mais famosos são :

  • A dicotomia
  • Aquiles
  • A flecha
  • Estádio

Os dois primeiros tratam de mostrar que é impossível descrever o movimento a partir da consideraração de espaço e tempo constituídos de infinitas subdivisões.
A Dicotomia
Zeno argumenta que para se locomover de um ponto A a um outro ponto B, é necessário que o sujeito se locomova antes para o ponto C na metade do caminho entre A e B. Mas para atingir o ponto C, precisa se locomover para o ponto D localizado na metade do caminho entre A e C. Para chegar a D, o sujeito precisaria locomover-se para E localizado na metade do caminho entre A e D. Repetindo-se este raciocínio recursivamente, chegar-se-á a conclusão de que o sujeito não poderia sequer começar a se locomover, pois sempre apareceria um novo destino localizado na metade do caminho que deveria percorrer naquele instante. Posto desta maneira, o movimento em si jamais iniciaria.
Aquiles
Zeno argumenta sobre uma hipotética corrida entre Aquiles e uma tartaruga. Aquiles, confiante em sua vitória, permite que a tartaruga comece em uma posição bem vantajosa à sua frente, digamos na posição T1 . Segundo Zeno, começada a disputa, Aquiles precisa chegar antes em T1, que é onde a tartaruga estava no início da corrida. Mas então a tartaruga não estará mais lá, pois terá também se locomovido para uma nova posição T2. Aquiles precisa então chegar a T2. Quando Aquiles atinge T2 a tartaruga não estará mais lá, tendo se locomovido para T3. Com este raciocínio, Zeno afirma que Aquiles nunca alcançará a tartaruga.
Estes dois paradoxos causam certa estranheza em quem os lê pela primeira vez. Sabemos que sempre podemos nos locomover de um ponto a outro, ou ainda, que numa corrida deste tipo, claro que Aquiles alcançará a tartaruga. Mas não conseguimos encontrar falhas no raciocínio de Zeno.

Estes dois argumentos, por vezes, são vistos como um só. No intuito de explicar estes paradoxos, a dicotomia é ligeiramente modificada.
Para chegar ao fim de um percurso, o viajante tem que percorrer a metade deste. Em seguida, deve percorrer a metade do caminho restante. Depois, novamente a metade do caminho que restará, uma vez percorridas as duas primeiras distâncias. Isso indefinidamente, pelo qual se conclui que o viajante nunca chegará ao final do percurso.
Com isto, fica mais clara a redução dos dois problemas à soma dos termos de uma série geométrica. A dicotomia pode ser expressa pela soma da série :
1/2 + 1/4 + 1/8 + ...
Cujo limite da soma é 1. Mas descrever um aspecto de um problema em termos matemáticos não significa resolvê-lo. Zeno não duvida que o viajante chegue ao final do percurso. Ele só tenta demonstrar que se considerarmos o espaço dividido em infinitos pontos, e o tempo em infinitos instantes, o movimento em si não pode ser descrito razoavelmente.
Os dois argumentos seguintes, como se fossem o inverso dos dois primeiros, retratam a impossibilidade de descrevermos tempo e espaço formados por infinitas partes, a partir do conceito de movimento.
A Flecha
Neste paradoxo, Zeno investiga o movimento de uma flecha, partindo do pressuposto de que para estar em movimento, a flecha precisa mudar de posição, ou melhor, sair da posição que ocupa. Supondo que o tempo pode ser visto como uma sucessão de instantes, mínimos, em qualquer destes instantes, assumindo que a flecha está em movimento, esta só terá duas opções. Ou se move para onde está, ou se move para onde não está. Mas a flecha não pode se mover para a posição em que já está, pois assim não mudaria sua posição o que nos levaria a concluir que não estará em movimento. A flecha também não poderá se mover para onde não está, por este tratar-se de um único instante mínimo. Zeno conclui que se em um único instante, a flecha não pode estar em movimento, ela não estará em movimento em nenhum instante, levando a crer que o movimento da flecha não existe.
Estádio
Neste argumento, Zeno considera três fileiras de corpos, compostos da mesma quantidade de segmentos do mesmo tamanho. A fileira central B, estaria em repouso, enquanto que a fileira superior A se locomoveria para a direita com uma velocidade constante. Considera-se também uma terceira fileira C, com a mesma velocidade de A, mas movendo-se da direita para a esquerda. Então, estipula-se que um o menor instante será definido como o tempo necessário para que A (ou C) se desloque de um único segmento. Se dispusermos as três fileiras em certas configurações, perceberemos que em um único instante, A terá percorrido um único segmento de B, porém dois segmentos de C. Como definimos nossa unidade de tempo como aquele necessário para uma fileira se deslocar de um único segmento, chegaremos a conclusão que não podemos definir o tempo nestes termos.
Os argumentos de Zeno causaram um enorme impacto na forma como os gregos viam a matemática. O monstro do Infinito se tornou ainda mais temido. Os mais de 40 paradoxos propostos por Zeno, resultaram em mudanças marcantes, tendo como principal consequencia, a constatação de que quantidades podiam ser descritas pela aritmética, mas magnitudes de natureza contínua, só poderiam ser estudadas como entidades geométricas, sem nenhum paralelo válido com o confortável universo do números discretos. Para os gregos, as magnitudes pertenciam à geometria, e não ao universo dos números. A geometria ganha então o status de ciência superior. A natureza era geométrica por excelência.
Mas isso não impediu que o infinito fosse investigado por filósofos e matemáticos posteriores a Zeno. Platão definia dois tipos de infinitos, o grande e o pequeno. O grande infinito estaria relacionado à capacidade interminável de adicionarmos novas entidades a um grupo. Já o pequeno infinito, relaciona-se ao processo de divisão infinita que certas entidades possuem. Aristóteles, por sua vez, considerou também a possibilidade de abordarmos o infinito sob outra ótica. Assim, poderíamos verificar a existência de dois infinitos distintos. O infinito potencial e o infinito completado (Actual Infinity). A ideia por trás do Infinito potencial está intimamente ligada a um processo que poderia ser repetido indefinidamente. Assim a sequência dos números 1, 2, 3, ... poderia ser encarada como potencialmente infinita, pois sempre se poderá adicionar um número à sequência, e este ato de adicionar nunca será exaurido. No capítulo anterior, a lista de nomes que utilizamos para identificar as quantidades é potencialmente infinita, visto que a aplicação das regras pode ser utilizada indefinidamente para gerar mais nomes. Visto desta forma, a lista nunca estará completa. Como infinito completado, Aristóteles considera-o relacionado a ideia de algo que pode ser tomado como um todo, uma entidade bem definida, mas que pode ser vista como constituída por infinitas partes. Trata-se portanto de um conceito paradoxal por natureza.
A relação íntima desses dois infinitos com os infinitos de Platão é latente. Mas os infinitos de Aristóteles parecem ser mais gerais por não sugerirem abertamente que são conceitos excludentes. Por exemplo, podemos tratar a sequência de polígonos regulares sob cada um dos conceitos isoladamente, apesar de estarmos considerando o mesmo universo, a saber, o dos polígonos regulares. Li um texto de um professor de matemática em que seus alunos deviam considerar o cálculo da aŕea de polígonos regulares circunscritos. Em seguida, pede-se para considerem que a área do próprio círculo pode ser dada pela área do polígono regular, quando o número de lados "tende ao infinito". Alguns alunos sempre discordam desta afirmação, mesmo que intimamente. Seu argumento é de que sempre haverá uma pequena área entre a linha do círculo e os lados dos polígonos, por maior que seja o número de lados do mesmo. O problema se resolveria facilmente se os alunos fossem instruídos acerca dessa dupla maneira de ver sequencias infinitas, tal como na figura abaixo.
Mas não se deve culpar nem o professor, nem o aluno. Vale aqui ressaltar que esta ideia de infinito completado, é realmente o centro de todas as discussões sobre o infinito através dos tempos. Tudo que se disse ou se dirá sobre o infinito, passa pela definição dada por Aristóteles. A constatação de Galileu de que existem tantos ímpares quantos números NATURAIS, só é válida se considerarmos o infinito completado. O que Galileu quis realmente demonstrar foi que, se assumirmos a existência deste tipo de infinito, então existirão tantos números ímpares quanto todos os números. Até mesmo a seguinte definição dada por Dedekind:
Um conjunto se diz infinito, quando pode ser colocado em correspondência biunívoca com uma parte de si mesmo.


assume de forma explícita a existência do infinito completado. Se negarmos sua existência, podemos simplesmente jogar no lixo todo o excelente trabalho de Georg Cantor sobre os transfinitos. Ao contrário do possa parecer, negar a existência deste tipo de infinito não é realmente uma heresia. Não há nada que o impeça, caro leitor, de assumir ou negar a existência do infinito completado. Não há uma "prova" de que ele exista. Apenas convencionou-se de que a abordagem era válida, e desenvolveu-se a matemática a partir daí. Mas grandes matemáticos incomodaram-se com esta atitude. Afinal, não podemos achar na natureza nada que possa ser tomado dessa forma. Um infinito que se possa tocar com as próprias mãos não existe. Mesmo Aristóteles advertia que a existência do infinito completado se dava apenas no mundo das ideias.Para ilustrar o quanto este conceito gerou controvérsias entre a comunidade filosófica e matemática, veja a posição de alguns matemáticos acerca da aceitação do infinito completado, ponto central na obra de Georg Cantor.
Eu devo protestar veementemente contra o uso do infinito como algo consumado, uma vez que isso não é permitido em matemática. (Gauss).
Não existe infinito completado. Os cantorianos esqueceram-se disso e cairam em contradição. As gerações futuras irão considerar esta teoria como uma doença da qual precisaremos nos recuperar. (Poincaré).


Eu não sei o que predomina nas teorias de Cantor - filosofia ou teologia. Mas estou certo de que ali não há matemática. (Kronecker).
A teoria de Cantor como um todo é um incidente patológico na matemática, do qual as futuras gerações ficarão horrorizadas. (Browner).
Mas, como sabemos, o infinito completado foi aceito pela maioria dos matemáticos, sendo defendido por grandes nomes como Dedekind e Hilbert. O que o leitor não deve esquecer é que, trata-se tão somente de uma convenção. Uma das consequências mais marcantes na afirmação de que o infinito completado seria uma verdade matemática, foi a reaproximação dos conceitos de quantidades e magnitudes em termos teóricos. Em determinado momento constatou-se que os conceitos matemáticos precisariam ser definidos com um certo rigor lógico, para o bem da matemática como ciência. O tratamento das magnitudes feito pela geometria, trazia sempre um aspecto intuitivo quando se tratava do infinito. Um grande esforço foi feito para aritmetizar a matemática. Entenda-se isso como reduzi-la a números e relações bem definidas. E este esforço pode ser considerado um dos mais frutíferos em toda existência da matemática teórica. O significado real do termo número, é investigado minuciosamente em campo científico e filosófico. A lógica formal é incorporada definitivamente à matemática, graças ao raciocínio conciso de Giuseppe Peano. A teoria dos conjuntos amadurece nas mãos de Cantor e Dedekind, e passa a ser utilizada para explicar vários conceitos numéricos. Grandes filósofos como Bertrand Russel, dedicam-se à interpretação dos conceitos e objetos embutidos nessa ciência. Diz-se que a matemática, até então, vivia em estado embrionário e este período representa seu nascimento.
Isto nos leva de volta a nossa pergunta. Existe um "conjunto de todos os nomes possíveis, formados apenas com as letras a e y" ? Este capítulo não respondeu a esta pergunta, mas pelo menos jogou alguma luz sobre o assunto. A aceitação do infinito completado passou por várias crises durante o desenvolvimento da matemática. Investigaremos a última crise, e os motivos que levaram tantos matemáticos a defender sua existências com unhas e dentes.


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