sábado, 14 de maio de 2011

VI MAGNITUDES - ou "itatiba"


Quando definimos o nosso próprio sistema para dar nomes às magnitudes, consideramos que essas distribuem-se de forma contínua. Retomaremos a discussão sobre magnitudes, por meio de uma abordagem diferente da utilizada anteriormente.

Uma das possíveis representações do que chamamos de de nomes DECIMAIS, seria uma reta numerada, ou melhor, um raio numerado partindo de 0 e dirigindo-se para o infinito.


Cada ponto deste raio, estaria relacionado a um nome único, que corresponderia a uma magnitude particular. Mas como os nomes foram gerados através da divisão de um intervalo unitário, podemos verificar que todo nosso sistema de nomes está na verdade, confinado ao espaço coberto por este intervalo.

VI.1 - A menor magnitude
Como vimos anteriormente, algumas magnitudes serão múltiplos de uma magnitude padrão à qual atribuímos 1 medida. Ao nome de cada magnitude destas, podemos relacionar um nome de quantidades, ou um NATURAL. Assim, se nosso sistema de nomes é o DECIMAL3, os nomes :

1.000, 2.000, 3.000 , etc.

podem ser chamados simplesmente de :

1, 2, 3, etc.

Neste caso, dizemos que o nome DECIMAL3 1.000 possui como correspondente NATURAL, o nome 1.

Como vimos anteriormente, qualquer nome DECIMAL3 é escrito com três casas decimais. Estes nomes possuem o seguinte formato :

NATURAL.dcm

A parte decimal dcm, pode assumir qualquer valor entre 000 e 999. Encontraremos estes mil dcm's entre os nomes 0 e 1, 1 e 2, 2 e 3, etc. Em todos intervalos entre dois nomes DECIMAL3 onde um tenha um correspondente NATURAL e o outro tenha como correspondente o NATURAL seguinte, o padrão dos mil dcm's se repetirá, conforme ilustrado abaixo :





Já no caso dos DECIMAIS2, os quais possuem o formato :

NATURAL.dc

dc assumirá valores de 00 a 99. Estes 100 dc's se repetirão também entre dois nomes DECIMAL2 que tenham correspondentes NATURAIS consecutivos.

Chamemos o componente NATURAL de um nome DECIMAL de parte natural e ao padrão que se repetirá em cada intervalo de uma unidade de parte decimal. Deste modo podemos dizer que um nome DECIMALn, para qualquer valor de n, será representado da seguinte forma :

parte natural.parte decimal

ou simplesmente :

natural.decimal

A parte decimal se repetirá entre todos os nomes que tenham correspondentes NATURAIS consecutivos.

Ao assumirmos que fizemos infinitas divisões do intervalo unitário, devemos notar a criação de nomes com uma importante característica, que é a propriedade de poderem descrever qualquer magnitude possível. A parte decimal destes nomes, cobre todo o intervalo contido em uma unidade, de forma contínua. A parte decimal entre dois nomes DECIMAIS, que tenham como correspondentes dois NATURAIS consecutivos, será a repetição da que encontramos entre os nomes 0 e 1. Esta consideração nos leva diretamente ao ponto. Não ao "ponto crucial do capítulo", e sim ao ponto geométrico.

Considerando os DECIMAIS10, cada divisão dos intervalos em 10 partes iguais, definia pequenos segmentos aos quais atribuímos uma parte decimal adequada. A uma nova aplicação do procedimento, definíamos segmentos cada vez menores. Ao extrapolarmos o número de divisões para o infinito, estes segmentos se tornaram os menores possíveis. Estamos dando o nome de ponto, justamente a estes menores segmentos possíveis.

Para que algumas das particularidades deste conceito fiquem claras, proponho uma experiência. Se você deseja fazê-la, não leia o texto depois da figura abaixo, antes de realizá-la, ou você poderá “estragar o final”.

Na figura em branco abaixo, imagine um ponto qualquer próximo ao centro. Concentre-se nesta imaginação até que a presença deste ponto esteja bem clara, como se você pudesse identificá-lo. Quando este ponto estiver bem definido, imagine um segundo ponto adjacente ao seu, acima deste. Quando você tiver a ideia destes dois pontos um sobre o outro, pode parar a experiência e continuar lendo o texto.



Vejo duas possibilidades para o final dessa experiência. Ou você conseguiu imaginar os dois pontos, ou sua razão matemática interferiu na sua tentativa e seu cérebro se recusou a deixá-lo executar tal heresia. Quando submeti esta experiência a garotos, ela foi bem sucedida no que diz respeito à materialização destes dois pontos. Muitos adultos sem um uma base teórica muito firme, também conseguiram realizá-la. Apenas alguns já iniciados na matemática e munidos de seus escudos racionais (isto não é uma crítica destrutiva) é que argumentaram sobre a impossibilidade de imaginarmos tais pontos. A justificativa é que o ponto possui dimensão 0. Dois pontos consecutivos, cada um medindo 0, resulta em um corpo que mede 0, ou seja, mede exatamente um ponto. Então o corpo de dois pontos representariam nada mais do que isso, ou seja, um ponto. Ainda assim, consideraremos que estes pontos existem sob determinado aspecto, e não existem sob outro.

VI.2 - O ponto e seus problemas
Se nosso processo de dividir cada intervalo em 10 partes for repetido infinitas vezes, teremos que todas as magnitudes possíveis terão seu nome único. Como assumimos previamente que magnitudes são grandezas contínuas, uma certa inconsistência provém destas duas crenças. Estas inconsistências são relacionadas às dimensões do ponto. Um ponto de dimensão alguma nos permite questionar a existência de magnitudes consecutivas, ou mesmo da validade de nosso sistema de nomes. Assim, dadas duas magnitudes rigorosamente consecutivas, estas devem diferir de exatamente um ponto. Mas um ponto tem dimensão 0, o que nos leva ao estranho fato de termos duas magnitudes distintas cuja diferença é zero. Como seria possível dizer que duas magnitudes consecutivas são diferentes, se a diferença entre as duas é zero ?

Uma outra alternativa seria assumir que o ponto tem uma medida o mais próximo possível de 0, mas não é 0. O primeiro problema nessa consideração é definir o significado de "o mais próximo possível" sem margens para enganos. Mas mesmo que se consiga definir precisamente este grau de proximidade, assumir que o ponto tem alguma dimensão, por menor que seja, destrói completamente a natureza contínua que atribuímos às magnitudes e voltaremos a nos deparar com vários problemas semelhantes aos tratados no capítulo IV. Suponhamos por exemplo que esta definição seja tomada como verdadeira, ou seja, o ponto tem uma dimensão indefinida, o mais próximo possível de 0. Poderemos sempre imaginar uma super lente que aumentasse o ponto até que o percebamos como uma esfera (no espaço 3D). A esfera em si possui um raio menor do que o ponto. Que nome daríamos a magnitude deste raio ? Para tornar esta experiência mais interessante, podemos imaginar que esta nossa super lente tenha uma escala, e que o ponto foi aumentado até seu tamanho relativo corresponder a uma medida desta escala. Analisando dois pontos consecutivos, observaremos que os dois ocupam duas medidas de nossa escala.


Mas se afastássemos um ponto do outro, como trata-se da menor distância depois do 0, o ponto afastado saltaria da marca de duas medidas para a marca de 3 medidas, sem ocupar nenhuma medida intermediária. Há aqui, uma clara falha no que entendemos por continuidade.


Apesar de qualquer um ter o direito de questionar a existência do continuum na natureza, na matemática ele é uma abstração das mais importantes. Assim como são abstrações a reta, o ponto, e muitos outros conceitos que as pessoas tendem a considerar reais. Feita esta observação, não podemos deixar de notar que a continuidade só pode ser justificada se considerarmos que o ponto é adimensional. Isto certamente nos levará a outros problemas, mas ao menos torna possível que consideremos a existência abstrata do continuum.

Uma outra questão a respeito do ponto e da coleção dos nomes de todos os pontos pode ser ilustrada com o seguinte experimento. Tomemos uma magnitude qualquer e a adotemos como medida padrão. Em seguida consideremos que o processo de geração de nomes foi aplicado nesta magnitude. Temos teoricamente, o nome de todos os pontos no intervalo [0, 1] de nossa medida padrão. Tomemos agora um segmento que meça exatamente a metade de nossa magnitude original.


Ora, o nome do último ponto deste segmento é 0.5. Nossa magnitude padrão está associada não só a todos os nomes relativos a este segmento, ou seja, aos nomes de todos os pontos no intervalo [0, 0.5], como também a uma quantidade igual de nomes, correspondentes ao intervalo ] 0.5, 1]. Logo, podemos imaginar que este segmento menor possui apenas a metade dos nomes relacionados ao segmento maior. Mas nada nos impede de considerar o segmento menor nossa medida padrão.



Assim, temos que assumir que o mesmo segmento tem agora associado a si, todos os nomes correspondentes aos pontos no intervalo [ 0, 1 ]. Uma simples mudança de convenção, parece ter o poder de adicionar pontos a um mesmo segmento. Como cada nome de magnitude é representada por um ponto, podemos dizer que o segmento maior possui ao mesmo tempo, uma quantidade igual de pontos que o segmento menor e também o dobro de pontos deste segmento.

Este é porém, o menor dos problemas envolvendo o ato de dar nomes a pontos. Observe por exemplo, as seis figuras abaixo.



Pois saiba que considera-se que todas estas figuras são constituídas pela mesma quantidade de pontos.

Talvez um leitor não matemático esteja neste momento, sentindo que sua cabeça está dando nós, tal sua dificuldade de digerir esta afirmação. Este leitor tem motivos de sobra para se rebelar contra este fato. Considerar que o menor segmento de reta na figura tem a mesma quantidade de pontos que a esfera abaixo dele, parece o absurdo dos absurdos. Mas existem provas que embasam esta estranha afirmação.

Um tipo de prova bastante utilizado para fazer afirmações desta natureza, é a prova geométrica. Todas elas partem de uma argumentação simples. A de que dois segmentos de reta de tamanho diferentes, possuem o mesmo número de pontos. Provas envolvendo figuras cada vez mais complexas, possuem este modelo como embrião. Portanto, acho oportuno nos determos nele pausadamente, passo a passo, no intuito de que o leitor se familiarize com esta prova, e a reconheça quando se deparar com provas derivadas deste modelo inicial.

Começa-se dispondo os dois segmentos lado a lado e escolhendo um ponto em uma posição estratégica. Estes três objetos são colocados tal como na figura abaixo.



Podemos considerar os segmentos de reta que partem do ponto escolhido e terminem em um dos pontos do segmento maior, de modo que cortem o segmento menor.



Se considerarmos todos os segmentos de reta cujas extremidades são, de um lado o ponto escolhido, e de outro um ponto do segmento maior, teremos :



Cada um destes segmentos, cruza o segmento menor em um ponto diferente. Podemos afirmar isto pela propriedade de que por dois pontos em um plano, traça-se apenas uma reta. Deduz-se daí que, dadas duas retas diferentes (no nosso caso, dois segmentos), estas possuem no máximo um ponto em comum. Como nosso ponto P previamente escolhido já é um ponto coincidente entre todos os segmentos, não poderemos ter mais nenhum outro. Logo, não existe nenhum ponto no segmento menor que seja compartilhado por dois segmentos que o cruzam. Como cada segmento tem como extremidade um ponto diferente do segmento maior (a base do triângulo na figura), podemos dizer que os dois segmentos possuem a mesma quantidade de pontos.

Esta prova é a matriz de onde se derivam todas as outras relacionadas com a comparação da quantidade de pontos de duas figuras geométricas diferentes. Por exemplo, consideremos a famosa prova de que existem tantos pontos em um segmento de reta quanto em toda a reta, o que nos leva a acreditar que existem tantos pontos no intervalo [0,1] (o segmento) quanto são os números Reais (a reta). Esta prova começa dispondo um segmento AB sobre a reta. O segmento é, de forma estratégica, colocado obliquamente em relação à reta. É esta disposição que nos permitirá chegar às nossas conclusões. O modelo é ilustrado pela figura abaixo :



Um outro elemento estratégico é utilizado aqui. Pelo ponto de intersecção, traça-se uma perpendicular à reta. Define-se então nesta perpendicular, dois pontos p e q, conforme demonstrado na figura abaixo. Estamos agora com todos os elementos necessários para desenvolvermos nosso argumento.



Traçamos a seguir, segmentos que se originam nos pontos da reta, à esquerda da intersecção e terminando todos em p. Estes segmentos cruzarão o segmento AB, cada um em um ponto diferente, conforme vimos no exemplo anterior.



De modo similar, podemos utilizar o mesmo procedimento para o lado direito. Desta vez, cada ponto da reta será ligado ao ponto q. Tal como no passo anterior, cada segmento cortará o segmento AB em um único ponto :



Nos é permitido imaginar portanto, que todos os pontos do lado esquerdo da reta podem ser ligados ao ponto p, e similarmente, todos os pontos do lado direito podem ser ligados ao ponto q. Concluiremos assim que a cada ponto da reta, corresponde um, e somente um, ponto diferente no segmento AB.

O leitor atento perceberá cedo ou tarde, que poderá provar quase tudo que quiser com este tipo de argumento. Que esferas cabem em um segmento de reta, que todos os segmentos são equivalentes, que áreas e volumes são apenas abordagens diferentes para a mesma quantidade de pontos, etc. A figura a seguir, “prova” que o segmento menor possui muito mais pontos que o maior, utilizando-se do mesmo modelo inicial, mas posicionando os segmentos e o ponto P, em lugares diferentes.



Estas provas tem um motivo para funcionarem. É que qualquer magnitude pode ser vista individualmente como constituída de infinitos pontos. Esta afirmação é tão importante que acho que este é o momento certo de citá-la como uma propriedade das magnitudes.

P1. Qualquer magnitude diferente de 0, em qualquer dimensão, pode ser estudada individualmente como se fosse constituída por infinitos pontos de dimensão 0.

No reino das magnitudes, a propriedade citada por Dedekind, de que :

Um conjunto é considerado infinito se puder ser posto em correspondência biunívoca com uma de suas partes.

não é exatamente uma propriedade, e sim uma consequência de P1.

O ponto de dimensão 0 deve ser visto como mera convenção. Esta convenção nos permite pensar em grandezas contínuas, o que seria veementemente negado se adotássemos que o ponto possui medida diferente de 0. Qualquer magnitude, do tamanho que quisermos, pode ser vista como composta de infinitos pontos de dimensão 0. Se esta medida for tomada como medida padrão, devemos evitar tratar outras medidas da mesma forma para não ferirmos a consistência. Não podemos criar estrelas de grãos de ervilha, apesar de podermos considerar cada uma individualmente, constituída de infinitos pontos de dimensão 0. No continuum, a menor distância é 0. A distância seguinte é 0+0 e a próxima é 0+0+0. Tratam-se de três posições ao mesmo tempo distintas e coincidentes. Percorrê-las uma a uma, enfrenta as limitações impostas pelo infinito potencial, as quais nos impedem de listar todas as quantidades possíveis uma a uma, ou todos os nomes possíveis de se formar com as letras a e y. Por outro lado, qualquer distância, pequena ou grande, pode ser considerada na sua totalidade. Este é o infinito completado. Esta distância sempre poderá (e não, "deverá") ser considerada como contendo infinitos pontos de dimensão 0.

Resta ainda uma última observação a fazer. Os dois conceitos de infinito dos quais estamos tratando (O potencial e o completado), não se complementam. O termo infinito potencial foi inventado para descrever a constatação de que se um evento, padrão, experimento, regra, procedimento, ou outra coisa qualquer, pode se repetir uma vez, nada nos impede de ao menos imaginar que tal coisa possa se repetir indefinidamente. Pensar de acordo com este termo, significa identificar cada uma das partes constituintes do objeto estudado, obedecendo uma certa ordem sequencial. É no infinito potencial que se baseiam os axiomas de Peano. No contexto do infinito completado, o objetivo é outro. Trata-se de considerarmos que qualquer todo, pode ser decomposto em infinitas partes, sem que tenhamos que definir a ordem em que as partes ocorrem para que este todo seja estabelecido. O infinito potencial se dedica cada parte, sem nunca atingir o todo. Já o infinito completado considera antes o todo, e na prática nunca será capaz de analisar todas as partes, uma por uma. É muito comum que encontremos alguma dificuldade quando abordamos um problema ora de uma forma, ora de outra em busca de respostas consistentes. A possibilidade de chegarmos a conclusões paradoxais, ou mesmo de não chegarmos a conclusão alguma, é muito grande nestes casos. Alguns dos argumentos de Zeno são exemplos de problemas estudados intercambiando as duas abordagens.

Dito isto, creio que agora estamos finalmente prontos para fazer algumas considerações a respeito de outros famosos argumentos sobre o infinito. Os argumentos de Cantor.

Licença Creative Commons
A obra OS NATURAIS E OS TRANSFINITOS de Fernando Montequio foi licenciada com uma Licença Creative Commons - Atribuição - Uso Não Comercial - Partilha nos Mesmos Termos 3.0 Brasil.
Com base na obra disponível em naturaisetransfinitos.blogspot.com.

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