sábado, 14 de maio de 2011

V OS ARGUMENTOS DE CANTOR - ou "como pensa um contador de pedras"

Como vimos, Os paradoxos envolvendo quantidades infinitas atravessaram a história sem um tratamento adequado. As batalhas travadas por Zeno contra esta fera, surtiram o efeito contrário do que se esperava. O infinito se recolheu ao âmbito da geometria, é verdade, mas todo matemático a partir daí, sentia que de um modo ou de outro, sua sombra retornaria ainda mais negra, como se isto fosse uma profecia escrita em um livro secreto, talvez por algum membro de uma seita religiosa fundada pelos pitagóricos.

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Mas se tal livro foi realmente escrito, ele deve ter mencionado as figuras de um profeta e de um Messias. Bernard Bolzano desempenhou bem seu papel de profeta, mostrando que a fera exilada estava na verdade entre nós e seu coração só ansiava por vingança e destruição. Os trabalhos deste matemático, prepararam o caminho para a chegada do verdadeiro Messias. Georg Cantor provocou mudanças tão profundas na matemática, que é surpreendente que alunos da 8a série do colegial, não tenham sequer ouvido o pronunciar de seu nome. Como um bom Messias, este russo utilizou-se apenas de sua inspiração e uma enorme simplicidade, para que, diferente de Zeno, o infinito não fosse destruído afinal, mas o próprio universo do que trata a matemática fosse alterado, tornando-se imune às investidas deste ser maligno. O infinito foi atacado pelo Messias de um modo que lhe era imprevisível e incogitável. Georg Cantor resolveu contar números. Deste dia em diante, o infinito deixou de ser uma assombração.

A matemática clássica baseia-se no estudos das várias relações, propriedades, e em alguns casos, das aplicações de dois tipos de números. Os discretos e os contínuos. Estes objetos, podem ser agrupados de várias formas diferentes, para o estudo de suas generalidades. Os principais conjuntos de números discretos são :

(a) Os Naturais

ℕ = { 0, 1, 2, 3, 4, 5, 6, ... }

Estes números representam o recurso por meio do qual as coleções são contadas e até mesmo comparadas, de acordo com sua ordem de grandeza. Nossos conhecidos nomes NATURAIS se assemelham bastante aos elementos deste conjunto.

(b) Os Inteiros

ℤ = { ..., -6, -5, -4, -3, -2, -1, 0, 1, 2, 3, 4, 5, 6, ... }

Estes são apenas a extensão dos Naturais, se resolvermos considerar grandezas discretas negativas como grandezas válidas.

Por sua vez, As grandezas contínuas, as quais chamamos de magnitudes, são agrupadas no conjunto dos números Reais. Neste conjunto, a ordem dos elementos é apenas parcialmente definida. Diferente de nossos DECIMAIS, o conjunto dos Reais também considera magnitudes negativas. Pode-se pensar nos elementos deste conjunto, como se representassem todos os pontos em uma reta.




Com o mesmo argumento de que podemos classificar os números Naturais como números pares e números ímpares, nos é permitido classificar os Reais do modo que nos for conveniente. Algumas destas classificações se tornaram tão comuns, que passaram a ser consideradas como se fossem conjuntos numéricos específicos. As duas principais formas de classificar os Reais são :

(c.1) Racionais e Irracionais

O conjunto dos números Racionais, denotado pela letra ℚ, contém todas as magnitudes Reais que podem ser obtidas pela razão entre 2 Reais que possuem correspondentes Inteiros. Alguns elementos deste conjunto são :

0.33333... , -0.5, 1024, etc.

Por poderem ser obtidos pelas seguintes razões de Reais com correspondentes Inteiros :

1/3, -1/2, 1024/1, etc.

Os Reais que não podem ser obtidos desta forma, fazem parte do conjunto dos Irracionais, de modo que :

ℚ ⋃ I = ℝ

(c.2) Algébricos e Transcendentes

Dado um polinômio qualquer com coeficientes inteiros, tal como :

P1 = ax + b

ou

P2 = x² - 2

chamam-se raízes do polinômio, aos valores de x que fazem com que o polinômio tenha valor 0. Deste modo, a raiz do polinômio P1 pode ser calculada igualando-o a 0 :

ax - b = 0

Logo :

x = b/a

Do mesmo modo, P2 tem raiz igual a :

x² - 2 = 0
x = √(2)

Denominam-se números Algébricos, todos aqueles que podem ser raízes de tais polinômios. Aos demais (tal como Π, ℯ, etc), dá-se o nome de Transcendentes.

Dos números tratados até aqui, o conjunto dos ℝ possui maior abrangência, uma vez que todos os elementos de ℕ, ℤ, ℚ e I possuem um correspondente em ℝ. Nossa intuição nos leva a acreditar que ℝ possui mais elementos que qualquer um dos outros conjuntos, visto que todos são subconjuntos de ℝ. Mas como estes conjuntos possuem uma quantidade infinita de elementos, é melhor que tenhamos muita cautela em fazer este tipo de afirmação. Afinal, vimos que a intuição é muitas vezes impotente em face ao infinito.

Cantor decidiu então, contar os elementos destes conjuntos. Para isto, utilizou-se da natureza dos elementos do conjunto ℕ. Ora, estes nomes foram criados justamente para contar. Consequentemente, qualquer conjunto que pudesse ser posto em correspondência biunívoca com ℕ, seria considerado um conjunto contável, ou melhor, enumerável. Define-se cardinalidade de um conjunto, como a quantidade de elementos que este possui. Assim, o conjunto X = { 0, 1, 7, 13 } tem cardinalidade 4. Este fato é expresso por Cantor da seguinte forma :

| X | = 4

Cantor define a cardinalidade de ℕ como :

| ℕ | = ℵ0

Em seguida, Cantor tenta determinar a cardinalidade dos conjuntos restantes, verificando se é possível estabelecer uma relação um-para-um de seus elementos com os elementos de ℕ. Uma condição necessária à enumerabilidade de um conjunto, é a sua ordenação. Estando um conjunto ordenado, a relação "sucessor" definida por Peano pode ser extraída desta ordem. A simples existência desta relação, nos garante poder passar por todos os elementos do conjunto sequencialmente. Deste modo, todo conjunto ordenado, pode ser colocado em correspondência biunívoca com o conjunto dos Naturais.

O Conjunto ℤ é a vítima mais fácil do método utilizado por Cantor, visto que o mesmo pode ser visto como :

1 = { 0, -1, 1, -2, 2, -3, 3, -4, 4, -5, 5, ... }

Este conjunto está claramente ordenado. A partir de qualquer um de seus elementos, podemos calcular o elemento seguinte. Isto significa que podemos definir uma ou mais funções, cujo domínio seja o conjunto de números Naturais, e a imagem seja este conjunto ℤ1.. Uma destas funções poderia ser :

f(n) = (-1)n ⨯ [ n + (n mod 2) ] / 2

Esta é uma fórmula que pode desanimar alguns leitores, dada sua complexidade. Na verdade, seu completo entendimento não é realmente necessário para nosso texto. A única coisa importante é que a fórmula fornece a sequência correta dos elementos de ℤ1. Mas se você decidir verificá-la, lembre-se que :

(a) (-1)n = -1 quando n é ímpar
(b) (-1)n = 1 quando n é par
(c) (n mod 2) nada mais é do que o resto da divisão inteira de n por 2. Logo, se n for par (n mod 2) será 0. Caso contrário, será 1.

Alguns valores retornados por esta função, são :

f(0) = 1 ⨯ 0 = 0
f(1) = -1 ⨯ [ 1 + 1 ]/2 = -1
f(2) = 1 ⨯ [2 + 0]/2 = 1
f(3) = -1 ⨯ [3 + 1]/2 = -2
f(4) = 1 ⨯ [4 + 0]/2 = 2

Em suma, para cada elemento de ℕ, está associado um, e apenas um elemento de ℤ1 e vice-versa. Isto se constitui uma relação biunívoca. Podemos então concluir que :

| ℕ| = | ℤ1|

Como ℤ1 nada mais é do uma das muitas ordenações de ℤ, temos :

| ℤ| = | ℕ| = ℵ0

A maior ambição de Cantor é, sem dúvida, definir a cardinalidade dos Reais. Como passo intermediário, ele resolve investigar se é possível determinar quantos números Racionais existem. Essa tarefa se mostra um pouco mais difícil, pois a ordem destes nomes não está bem estabelecida, e entre duas frações diferentes, existirão uma infinidade de outras. Engenhosamente Cantor consegue bolar um modo de ordenar os elementos deste conjunto de forma consistente. Ora, os números Racionais podem ser considerados em sua forma P/Q, sendo P e Q, magnitudes com correspondentes Inteiros. Frações com P e Q contendo divisores comuns, podem sempre ser simplificadas até obtermos p/q, sendo p e q primos entre si. Por exemplo, ao considerarmos o Racional descrito por 6/10 podemos notar que 6 e 10 não são primos entre si. Na verdade, tanto um como o outro podem ser divididos por 2. Logo, a representação 3/5 é considerada por Cantor, como a representação preferida de 0.6, ou 6/10, pelo fato de 3 e 5 serem primos entre si. Podemos dizer então, que todos os números Racionais entre 0 e 1 podem ser descritos pela fração p/q sendo

(a) q diferente de 0 ;
(b) p e q primos entre si ;
(c) p < q.

 Com isto, podemos dizer que a coleção de todos os p/q é equivalente a de todos os Racionais entre 0 e 1. Uma dentre várias maneiras que podemos ordenar os elementos deste conjunto, consiste em considerarmos :

 F = p / q
 S = p + q

e estabelecermos nossas regras de sucessão baseadas no resultado destas duas operações envolvendo p e q. Cantor propõe que estas regras sejam :

(1) Os números com menor S virão primeiro ;
(2) Quando dois números contiverem o mesmo valor de S, o que possuir menor F, virá primeiro.

Vejamos como construiríamos uma lista destes números, através das regras sugeridas por Cantor. Não temos nenhum p e q cuja soma seja 1, ou 2. Nossa lista começará então com S = 3. Isto é obtido com p=1 e q=2. Temos portanto :

1 = { 1/2, ?, ?, ... }

Tomemos agora os números que somam 4. Neste caso p=1 e q=3.

1 = { 1/2, 1/3, ?, ?, ... }

Em seguida virão os que somam 5. Temos dois casos aqui (lembre-se que p < q, e p e q são primos entre si).

p1 + q1 = 1 + 4
p2 + q2 = 2 + 3

De acordo com (2) 1/4 vem antes de 2/3 pois :

1/4 = 0.25
2/3 = 0.6666...

Logo :

1 = { 1/2, 1/3, 1/4, 2/3, 1/5, 1/6, 2/5, 3/4, ... }

É fácil perceber que todos os Racionais p/q serão listados. Além disto, pela utilização destas regras de sucessão, podemos afirmar que ℚ1 está ordenado. Dado qualquer p/q, podemos calcular seu "sucessor". Por exemplo, qual é o sucessor de 2/9 ? Uma forma de obtê-lo é tomarmos todos os pares (p, q) que somam 11.

p1 + q1 = 1+10
p2 + q2 = 2+9
p3 + q3 = 3+8
p4 + q4 = 4+7
p5 + q5 = 5+6

Em seguida, listarmos os valores de F para todos estes pares : 

p1/q1 = 1/10 = 0.1
p2/q2 = 2/9 = 0.2222...
p3/q3 = 3/8 = 0.375
p4/q4 = 4/7 = 0.571428...
p5/q5 = 5/6 = 0.83333...

Logo, o sucessor de 2/9 será 3/8. O sucessor de 5/6 é 1/11. Você seria capaz de calculá-lo ?

A ordenação do conjunto dos números Racionais proposta por Cantor, era a única condição que ele precisava para contá-lo. Uma vez ordenado, podemos associar o número Natural 1 ao primeiro elemento, 2 ao segundo, 3 ao terceiro, e assim sucessivamente. Ou seja, a tal da relação biunívoca entre os dois conjuntos existe, o que nos leva a crer que :

| ℚ1| = | ℕ|

De onde se conclui :

| ℚ| = | ℕ| = ℵ0

Esta afirmação pegou muitos matemáticos de surpresa. Talvez você mesmo esteja meio que "incomodado" com este estranho fato. Mas a conclusão de Cantor está correta neste contexto.

Quanto a cardinalidade de ℝ, Cantor demonstra mais uma vez sua genial habilidade em manipular conjuntos. Ele sugere a seguinte experiência :

Suponhamos que conseguíssemos listar a parte decimal de todas as magnitudes existentes no intervalo [0,1[ de nossa reta Real. A ordem em que as partes decimais seriam listados, não é importante. Só o que nos interessa é a pressuposição de que todos os nomes seriam listados. Para simplificar a abordagem de Cantor, vamos considerar que a lista foi escrita na base binária. Consideraremos apenas a parte decimal do número, uma vez que a parte inteira é 0 para todos eles. Esta lista hipotética escrita nesta base, poderia ser, por exemplo :

10111000100010001001...
11100010001111000110...
11111001001101111001...
               :
               :
10000001111000110100...

Cada linha teria ℵ0 dígitos. Podemos presumir inicialmente que existem ℵ0 linhas. Deste modo, os nomes de nossa lista podem ser colocados em correspondência biunívoca com o conjunto dos números Naturais. Colocando isto na forma proposta por Cantor, teremos :

| Lista | = | ℕ|

Se nossa lista contiver todos os nomes das partes decimais, podemos então concluir que : 

| ℝ | = | ℕ| = ℵ0

Mas Cantor frustra nossa ingênua pretensão argumentando que não podemos considerar tal lista como completa. Para provar isto, ele sugere que comecemos a escrever um nome segundo as seguintes especificações :

(r1) Se o primeiro nome da lista tiver 0 como primeiro dígito, nosso nome terá 1 como primeiro dígito, caso contrário o primeiro dígito do nosso nome será 0.
(r2) Se o segundo nome da lista tiver 0 como segundo dígito, nosso nome terá 1 como segundo dígito, caso contrário o segundo dígito do nosso nome será 0.
(r3) Se o terceiro nome da lista tiver 0 como terceiro dígito, nosso nome terá 1 como terceiro dígito, caso contrário o terceiro dígito do nosso nome será 0.

Ou mais resumidamente :

(rn) Se o n-ésimo nome da lista tiver 0 como n-ésimo dígito, nosso nome terá 1 como n-ésimo dígito, caso contrário o n-ésimo dígito do nosso nome será 0.

Se procedermos de acordo com estas regras, fatalmente chegaremos a um novo nome que não estará na lista, pois nosso nome será diferente do primeiro nome da lista por causa de r1, diferente do segundo nome da lista por causa de r2, e assim sucessivamente. Nosso nome será diferente de cada n-ésimo nome da lista pelo menos no dígito n. Ora, se nosso nome é um nome válido (e ele é) e não está na lista, a única explicação plausível é que nossa lista não está completa, de onde se conclui que existem mais nomes de magnitudes do que são os elementos dos Naturais. Logo :

| ℝ | > | ℕ|

Ou seja :

| ℝ | > ℵ0

Neste exemplo específico, Cantor afirma que :

| ℝ | = 20

Toda a inspiração de Cantor parece estar baseada em um ponto de vista que ele já havia adotado a algum tempo. Considerar a existência de um número finito que seja maior que todos os outros, nos levará a uma contradição óbvia. Por outro lado, não existe contradição alguma em postular a existência de um número não-finito, que seja o primeiro número depois de todos os números finitos. A este número, Cantor deu o nome de ω. Os números subsequentes a ω seriam ω+1, ω+2, etc. Segundo as palavras de Cantor, onde v representaria qualquer número Natural :

ω é o menor de todos os números maiores que todos os números Naturais. Mas ω - v é sempre igual a ω e, portanto, não podemos dizer que os números crescentes v fiquem tão próximos quanto queiramos de ω ; de fato, qualquer número v, por maior que seja, está absolutamente distante de ω quanto o menor número v. Aqui temos, de forma clara, o fato muito importante de que meu menor número ordinal transfinito ω situa-se absolutamente fora da série infinita 1,2,3,... . Por conseguinte, ω não é um número finito máximo, pois não há tal coisa.

ω e ℵ0 carregam semelhanças e diferenças entre si. Enquanto que ao número ordinal ω, admite-se a possibilidade de adicionarmos-lhe 1, obtendo-se o próximo ordinal ω+1, ao número cardinal ℵ0, isto não verifica-se. Segundo Cantor :

0 + 1 = ℵ0

Talvez este seja o ponto crucial na rejeição dos argumentos de Cantor por parte dos intuicionistas. O teorema da indução completa é seriamente abalado pela aceitação de ℵ0. As seguintes considerações de Russel deixam isto bem claro.

[...] portanto, a quantidade de números indutivos de 0 a m é maior que m [...] Mas é fácil de ver que este número não é um dos números indutivos [...] Pode acontecer que 0 tenha uma propriedade e que se n a tiver, também a tenha n+1, e que, no entanto, este novo número não a tenha. As dificuldades que por tanto tempo retardaram a teoria dos números infinitos foram em grande parte motivadas pelo fato de pelo menos algumas das propriedades indutivas terem sido erroneamente consideradas como devendo permanecer a todos os números. Na verdade, pensou-se que não podiam ser negadas sem contradição.

Esta opinião de Russel, rendeu-lhe uma pequena rusga entre ele e Poincaré. Mas o que devemos mesmo levar em conta é que este ponto de vista permite a Cantor o desenvolvimento de toda uma teoria acerca das quantidades transfinitas. Não pretendo aqui, examinar todos os detalhes de sua obra. Afinal, existem numerosos textos disponíveis on-line sobre os argumentos e teorias de Cantor, a maioria deles, bem melhores e mais ricos em detalhes do que este capítulo. Tudo que precisávamos para fazer algumas considerações sobre estes argumentos, contudo, foi exposto aqui. Só precisamos agora, revisitar o universo das magnitudes. Mas desta vez com uma ótica diferente da que utilizamos no capítulo anterior.

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